A noção de que somente pessoas doentes podem cometer atos extremos e reprováveis não é corroborado pelos estudos elaborados pela Criminologia
Postei há tempos uma matéria sobre uma experiência que foi denominada “Efeito Lúcifer” onde descobrimos que pessoas comuns, numa situação onde podiam exercer poder arbitrário e legal sobre outras, tornaram-se cruéis torturadores.
Hoje vamos adentrar um pouco mais neste campo, o da crueldade, maldade ou perversidade, como queiram chamar. Por que estou postando sobre este tema? Porque tomando conhecimento dos noticiários atualmente percebemos que os atos ditos maus ou cruéis estão se tornando um lugar comum em distintas partes do globo. Seja em regimes totalitários (Síria, por ex.), seja em países democráticos (Brasil, onde se queimam moradores de rua). Em vista disso é útil saber os porquês das pessoas agirem assim para, se possível, prevenir.
Ao indivíduo comum, normal, bem comportado parece que o mundo enlouqueceu. Será? Vejo duas possibilidades de resposta: 1) a crueldade sempre existiu, somente que agora temos amplo e imediato acesso, ou quase, aos fatos que ocorrem na sociedade planetária ou 2) mais pessoas estão “saindo dos trilhos” porque não estão aguentando as mudanças que ora ocorrem no planeta (a consciência está aumentando, e sendo ela luz, acaba trazendo à tona a escuridão que existe em cada um).
Freud atribuía a maldade à pulsões (conceito vago e difícil de entender) eu prefiro, segundo a Análise Transacional, atribuí-la à Criança Interior. Nossa criança interna é amoral, como qualquer criança pequena o é, carente de juízos de valor. Os pequenos não sabem que estão causando algum mal ao gato quando puxam o rabo dele. Os conceitos de bem e de mal vão se instalando em nossa psique conforme vamos crescendo. Na idade adulta, para alguns, ter seu objetivo alcançado transcende seus conceitos e/ou valores internalizados.
Trarei aqui algumas contribuições de um excelente trabalho (Tese de Mestrado de Marie Danielle Brülhart Donoso – Estudo psicanalítico sobre a gramática da maldade gratuita).
Autores citados na tese mencionada trazem diferentes abordagens à questão da crueldade. Gostei do enfoque de Hannah Arendt que considera que o mal é a absoluta falta do pensar (em profundidade). Em decorrência desse pensamento cunhou a expressão mal banal ou banalidade do mal. Ela chegou à sua conclusão a partir do estudo que realizou sobre os nazistas. Esteve presente, inclusive, nos julgamentos de Nuremberg. Esta “falta do pensar” nada mais é do que falta de reflexão ou, por extensão, falta de consciência evoluída.
Neste exemplo pode-se constatar a ausência de reflexão (depoimento de um soldado sobre os extermínios na ex-Iugoslávia):
“A gente mata, e depois que a gente matou […] temos que continuar matando sem parar, em ação sem parar, tiros sem parar, dedo no gatilho sem parar […]. O importante é uma certa eficiência, uma coisa puramente, puramente empírica: não há muita filosofia, nem muita reflexão sobre o porque matei. É isso. (Welzer, 2007, p. 276).”
“Arendt não acredita que exista um Eichmann em cada um de nós, mas suas características é que se multiplicariam em sociedades de massa, inclinadas ao não exercício do pensamento e à falta de profundidade.”
“Não pensar é também negar a si a responsabilidade pelos seus atos e é justamente quando não refletimos sobre o mal que podemos realizá-lo, quando anestesiamos a criticidade.” – Adilson Silva Ferraz –
Hannah Arendt dizia que “Os campos (de concentração nazistas) são a única forma de sociedade onde é possível dominar o homem inteiramente”, mas conforme vimos no Experimento de Zimbardo – o Efeito Lúcifer, isso é possível em outras circunstâncias, desde que estejam presentes os elementos propiciadores.
Além do fato de não pensar, outro elemento vem propiciar o surgimento da bestialidade nos seres humanos: fazer parte de uma “massa” humana.
Heinrich Himmler num de seus discursos: “Nós tínhamos o direito moral, nós tínhamos o dever em relação ao nosso povo, de matar esse povo que queria nos matar. Não é um “eu” que mata, é um “nós”. (Welzer, 2007, p. 282).”
Assim fica mais fácil, não é? Um “nós” ao invés de um “eu”.rsrs
Quando o indivíduo faz parte de um grupo, grande ou até mesmo pequeno, ocorre o que Freud se referia como abdicar do ideal de ego pelo ideal de massa ou como disse Marie Danielle:
“[…] o anonimato da massa – facilita uma suspensão da repressão e um apagamento da consciência moral e do sentimento de responsabilidade.”
Novamente aí observamos a falta de reflexão e consciência evoluída, pois um indivíduo altamente consciente escolherá o caminho a agir de acordo com seus princípios éticos e não se deixará levar pela turba.
Um terceiro elemento encontrado na manifestação da violência ou crueldade é a segregação, o catalogar-se, e aos demais, por nação, etnia, credo, orientação sexual, etc.
Sobre o massacre de My Lai, Vietnã : “Aterrissamos em outro planeta. Ninguém tem a menor ideia do que falam. Ninguém tem o menor sentimento pelos vietnamitas. Não são seres humanos. Então, pouco importa o que você faça deles. (Welzer, 2007, p. 239).”
Vemos no noticiário: pai e filho espancados por suposição de serem gays; templos espíritas e umbandistas são atacados por religiosos de outra fé, moça agredida brutalmente por terem suposto que era prostituta, roubos seguidos de morte quando as vítimas nem sequer reagiram, assassinato de crianças numa escola por fanático islâmico e por aí vai a insana fúria dos intolerantes que não conseguem aceitar as diferenças, que se consideram donos da verdade ou baluartes de sua fé, que se supõem superiores por sua raça ou status social.
“Os requintes de bestialidade mais atrozes acompanham o homem ao longo de toda sua história e a aculturação, o progresso e a ciência não proporcionaram a hegemonia da civilidade nem garantiram o primado da razão.”
A vida em sociedade impõe restrições aos nossos impulsos primitivos que quando chegam a um limiar crítico irão se descarregar, por exemplo, através da violência. Uma das formas de descarregar os impulsos primitivos seria, o que é tão comum atualmente, hostilizar minorias “diferentes”.
Enfim, não podemos dizer que exista maldade gratuita porque toda ação humana tem algum motivo por trás. . Vejamos o exemplo de um torturador que gosta do que faz, ele pode estar desrecalcando no torturado os maus tratos ou falta de amor que sofria na infância.
A psique humana é muito complexa e sempre devemos levar em conta que, muitas vezes por detrás de uma aparência polida, reside um ogro primitivo que pode emergir a qualquer momento. Esse é o ser humano nem besta, mas também nem anjo. Enquanto vivermos na dualidade assim será.
Reflitam sobre isso.
[ PUBLICADO ORIGINALMENTE NO BLOG EXPANSÃO DE CONSCIÊNCIA ]
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