A Puta, romance de Márcia Barbieri, publicado pela editora Terracota, é uma obra literária erótica ou pornográfica?
Segundo Eliane Robert Moraes, no seu livro “O que é pornografia”, “a palavra pornografia provém do grego pornographos, que significa literalmente escritos sobre prostitutas. Assim, em seu sentido original a palavra refere-se à descrição da vida, dos costumes e dos hábitos das prostitutas e seus clientes.”
Há outro termo que se refere ao uso que a literatura faz do sexo: erotismo. Segundo ainda Moraes, “a palavra erotismo surgiu no século XIX, a partir do adjetivo erótico, este derivado do grego Eros, Deus do desejo sexual no sentido mais amplo. Amor fraterno, paixão sexual insistente, busca excessiva da sensualidade são algumas das definições que os dicionários correntes dão de erotismo.”
Moraes vai além, dizendo que se quisermos superar o senso comum na matéria, já que é difícil traçar os limites entre o erótico e o pornográfico, deveríamos adotar a seguinte sugestão dada pelo escritor Alain Robert-Grillet: “Pornografia é o erotismo dos outros.”
Erótico ou pornográfico, diz Moraes, nesse tipo de literatura o essencial é que se trata de sexualidade, “e supõe-se que ela tenha uma certa capacidade afrodisíaca (ou ao menos pretenda tê-la), isto é, que excite os apetites ou paixões sexuais de seus consumidores.”
Obscena – fora de cena – a literatura erótico/pornográfica causa constrangimento, pois se pressupõe que o assunto sexo deva ser tratado apenas na alcova e não publicamente: a sexualidade é “aquilo que se mostra e deveria ser escondido”. E mais obscena se tornaria por se pretender Literatura com L maiúsculo?
E é o que o romance de Barbieri de fato é: boa literatura, incendiada com o erótico, o pornográfico, o sensual, o sacana… e com muita poesia na linguagem.
Tem tudo isso, mas tem também indagação sobre o amor, sobre o sentido da existência, sobre as razões e insanidades do desejo, sobre os suplícios das relações humanas em geral, sobre os buracos sadomasoquistas e existenciais das relações sexo-afetivas, sobre os prazeres da carne, sobre as desilusões e ilusões das pulsões sexuais etc.
Como no seu primeiro romance, “Mosaico de rancores”, em “A Puta” a linguagem vai se pervertendo ao sabor das perversões sexuais. Não há como não driblar a língua corrente em contornos inusitados quando o desejo expresso é desviante. Cambaleante como as pernas moles cansadas de cópulas, vai-se traçando uma narrativa que ora ascende como fogo, ora gela como a solidão. Uma mistura de realidade e surrealidade também perpassa toda a narrativa. Veja-se o exemplo a seguir:
“A foda me provoca risos e convulsões e faz com que me recorde que o lugar de onde eu vim é tão ferrado quanto o lugar que estou agora. Limpo o esperma que escorre da minha boca e ele me beija antes que eu termine. Ele é sistemático na hora de gozar, um jato na virilha e outro na minha garganta. Depois do sexo ele fica horas retirando pelos do tórax, improvisando uma pinça com o polegar e o indicador, enquanto denuncia minha nudez assassina. Vendo-o assim eu não diria que ele acabou de vasculhar as incoerências da minha carne, sou um ser despencado, estrangeiro, e tocando minha vagina não encontro vestígios de parentesco com nenhuma espécie conhecida, um peixe voador sentado nu à beira catastrófica da cama e não posso saber o que existe debaixo dos meus pés, calculo a existência de alguns bichos peçonhentos, mas isso não passa de uma possibilidade e a possibilidade fere.”
A literatura de Barbieri tem uma linguagem livre como as rédeas soltas de um corpo chegando ao orgasmo. As palavras parecem se mexer em ondulações que alteram a velocidade seguindo os movimentos dos acontecimentos que a narrativa delineia. Palavrões se conjugam à docilidade de uma carícia, corpos em descanso são devassados como consciências em situação de risco. Contraposição permanente entre força e fraqueza, entre desejo de vida e pulsão de morte. Se o homem é um ser que pensa, também é um corpo (e moral) em estado de devastação aguda:
“Qual dos seus filósofos te salvou da ruína e da gonorreia? A sífilis devorou seu cérebro e você nem percebeu, não se deu conta do tamanho do rombo. Mesmo doente você continuou soberbo. Continuou utilizando dialetos incompreensíveis, não queria se misturar a grande massa de ignorantes. Você costumava dizer que a mulher trazia o sêmen da desgraça, por isso se manteve casto por muitos anos. Você estava certo, a buceta é um buraco infectado. Trazemos o germe da humanidade em nossas trompas, nada que multiplica pode ser inocente. Você também trazia o leite infectado no seu pau, mas fingia não ver, seus olhos estavam viciados em contemplar somente objetos distantes. O fora foi o tema principal das suas teses furadas. Olhou para seu pau? Ele estava em carne viva, vertia um pus esverdeado e fétido, e o que as mentes evoluídas fizeram por você? Nenhum deles quis te fazer a punção, com medo de se contaminar.”
Os prazeres produzidos no leitor são de várias ordens, variando do sadismo ao masoquismo, do escatológico ao sensual momento de uma trepada normal. Ao descrever um escorpião subindo pelo seu braço e continuando sua trajetória pelo corpo da personagem temos a erótica descrição não de uma simples relação sexual, mas de uma invasão sexual com a morte no final. É o resultado de uma relação marcada pela impossibilidade da violência não ser o guia dos afetos:
“Continuei calada observando o escorpião escalando meus seios, ele circulou pelos meus mamilos, ele não conhecia os segredos das fêmeas, não demorou muito e ele se perdeu nos pelos da minha pélvis. Não o insultei, esperei ele roçar meu clitóris, soltei um pequeno gemido, ele caiu, em seguida pisoteei, senti sua carapaça romper, a madrugada alta indicava que logo o sol comeria o resto do seu corpo.”
Misto de prazer e possibilidade de morte, a presença do escorpião metaforiza o orgasmo, a “petit mort”, o pequeno instante em que o ego desaparece sob a convulsão do gozo (quando experimentamos a morte por alguns segundos).
Embora as descrições sejam afrodisíacas, elas também pretendem-se linguagem e as palavras devem ser o veículo exato (como um cálculo sadiano) da transmissão das emoções com seu devido peso de prazer e desgosto: “Cuspi cada palavra em seu ouvido de merda. Você me dizia que você se excitava com as sacanagens que eu falava enquanto cavalgava no seu quadril. Você era o tipo que não encontrava a felicidade em buceta nenhuma, era homem de ressentimento, morreria guerreando com os próprios fantasmas e xingando as vitórias alheias. (…) Quando anoitecia eu gostava de passar as mãos pelas suas vértebras e vê-lo se envergar feito um felino. Eu era humana demais para suas abstrações, seus pensamentos eram gordos, obesos, eu não acreditava que eles vinham daquele corpo mesquinho, quase anêmico, quase kafkaniano.”
Para a descrição de seu mundo fantasiado, futuro ou passado, a escrita delirante de Barbieri nos leva para um cenário absurdo onde se mistura o erótico e o fatalismo:
“Não há mulheres, é o velho problema da colheita humana, os homens preferiam comer outros homens, assim evitavam a multiplicação e consequente divisão do pão. (…) Eu, a última refugiada. Era vista como uma vagina. Quando enjoavam de comer uns aos outros, me procuravam. Puxavam meu cabelo, na altura da nuca e socavam sem piedade. Algumas vezes eu respondia ao ataque com longos gemidos. Logo após o ato cuspiam. Eu era boa, mesmo quando passiva. O sangue e o cuspe refrescavam o meio disforme das minhas ancas. Muitos mundos já haviam despencado daquela bacia. Mas agora estavam distantes e nem sequer se lembravam de onde saíram. Uma vulva gigante e vaga assombra minha cabeça. A gente nunca se lembra. A primeira terra que levamos à boca lembra desgraça. Todo entardecer traz corpos putrefatos à porta. A mão em punho procura um bucho para se aliviar. Um poente para destrinchar-estripar. Quem pode afirmar que nunca sentiu vontade de apunhalar o pai e comer a própria mãe?”
Escavando as anomalias da vida, Barbieri transfere para a esfera da linguagem a comunicação das forças de Eros e Tânatos, o primeiro em sua tentativa de permanência, e o segundo na sua angústia de dissolução masoquista:
“O corpo é a casa dos fortes, a alma é para quem tem tempo sobrando. A maioria dos homens descobre que está vivo quando tem sua carne esfolada, olha no espelho e contempla os hematomas, antes disso se assemelha a uma ameba.”
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